Nos últimos 20 anos, os acidentes com escorpiões em áreas urbanas, especialmente envolvendo crianças pequenas, têm gerado preocupação e discussões. Dado esta realidade, podemos afirmar que o que está sendo feito ainda não é suficiente para conter a dispersão da infestação e reduzir o número de acidentes com os habitantes das áreas infestadas.
Este relatório visa entender e analisar os dados de acidentes escorpiônicos nos últimos anos, além de discutir aspectos do controle dessa espécie e estratégias adotadas, bem como a proliferação de informações equivocadas e sem comprovação cientifica.
Acidentes Escorpiônicos No Brasil
Antes de abordar estatísticas, é importante entender a dinâmica da vigilância desse tipo de acidente, sua notificação, consolidação e reporte. Todas as unidades de saúde do país são obrigadas a reportar ao SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) uma série de doenças e agravos, incluindo acidentes por animais peçonhentos. Existem formulários para o reporte desses casos, que incluem acidentes com cobras, aranhas, lacraias, abelhas, lagartas, águas vivas e escorpiões. Contudo, existem eventos que não são reportados e são chamados de subnotificação.
Existem regiões onde apenas os casos mais graves de acidentes escorpiônicos são reportados, devido à baixa toxicidade do veneno de algumas espécies e à boa saúde do acidentado adulto, que muitas vezes opta por tratamento sintomático em vez de buscar uma unidade de saúde. Desde 2013, o número de acidentes escorpiônicos supera a soma dos demais acidentes com animais peçonhentos, evidenciando a influencia positiva do crescimento das zonas urbanas, redução na cobertura vegetal nativa e a colonização de novos territórios pelos escorpiões.
O último Boletim Epidemiológico sobre escorpionismo, publicado pelo Ministério da Saúde em novembro de 2024 (Vol. 55, n⁰ 03), reporta 183.738 acidentes escorpiônicos com 92 óbitos em 2022, principalmente em áreas urbanas. A predominância de acidentes ocorre nas regiões Sudeste e Nordeste, com os estados de São Paulo, Minas Gerais e Bahia somando 98.849 casos, oque representa quase 54% do total. Essa concentração de casos é visível na ilustração de distribuição de casos publicada no último Boletim Epidemiológico.
Vale ressaltar que o número de acidentes escorpiônicos tem crescido na Região Sul, sendo que a ocorrência da espécie T. serrulatus nessa região é mais recente. Outro dado interessante é que a maioria dos acidentes notificados ocorre no segundo semestre de cada ano, entre agosto e outubro, devido ao aumento das temperaturas e à ausência de chuvas após o inverno.
Entre as espécies de escorpiões de importância médica no Brasil, duas ocorrem com maior frequência em ambiente urbano: Tityus stigmurus e Tityus serrulatus. Ambas se reproduzem por partenogênese (reprodução assexuada em que um ser vivo se desenvolve a partir de um gameta feminino não fecundado), sendo a última responsável pela maioria dos acidentes fatais. Estas espécies não têm um período reprodutivo específico e ocupam nichos nas áreas urbanas com abundância de presas, como sistemas de esgotos e cemitérios, facilitando sua dispersão para novas áreas. Seu período de atividade predominantemente noturno, somado ao hábito de permanecer reclusos durante o dia e à capacidade de sobreviver semanas sem se alimentar, favorecem seu transporte passivo junto as cargas como hortaliças e frutas.
Ao ampliar a amostragem de notificações de acidentes escorpiônicos, incluindo os dados oficiais desde 2000, é possível enxergar a tendência e evolução dos números e comparar com o crescimento da população no mesmo período.
Causas, Informações e Soluções
A elevada capacidade de adaptação e sobrevivência dos escorpiões, especialmente da espécie Tityus serrulatus, é o maior fator para a explosão no número de acidentes escorpiônicos. Sua capacidade de reproduzir mesmo sem se alimentar por 209 dias ou sobreviver até 4 horas submerso em água, como demonstrado por Pimenta R. (2019) e Ramires E. (2024) respectivamente, além da reprodução partenogenética, favorece seu estabelecimento e multiplicação em novas áreas. Esta seria uma primeira causa.
A estratégia de não usar no manejo integrado um saneante desinfestantes para o controle tem por objetivo evitar acidentes causados pela dispersão de escorpiões desalojados por tratamentos inadequados, mas por outro lado ao desaconselhar fortemente o emprego de controle químico, reduziu-se o número de tratamentos adequados e comprometeu a evolução e melhoria do manejo integrado utilizando produto saneante desinfestantes. Neste contexto, olhando a realidade dos números, pode-se afirmar que a captura rotineira de adultos não está sendo suficiente. É importante comentar que a orientação de evitar o produto saneante desinfestantes para o controle de escorpiões pode ter favorecido a dispersão dos escorpiões para novas áreas e certamente desestimulou a realização de pesquisas e estudos científicos com tratamentos químicos.
Outro ponto negativo gerado pela estratégia de “cancelar” o uso de produto saneante desinfestantes foi a promoção e divulgação de informações erradas sobre a efetividade dos produtos saneantes desinfestantes. É comum encontrarmos afirmações como “Inseticidas não matam escorpiões” e explicações como “Escorpiões fecham seus espiráculos ao detectar inseticidas no ambiente” ou “Escorpiões entram em estresse e aceleram a reprodução ao perceber inseticidas”, bem como a recomendação de criar galinhas d’angola divulgados por técnicos, em entrevistas, notas técnicas oficiais e em profusão nas redes sociais por influenciadores sem expertise, enquanto o número de casos continua crescendo.
Não se pode afirmar que o uso exclusive de produto saneante desinfestante seja a solução ou o melhor caminho a ser seguido para resolução do problema, pois não existe bala de prata ou solução simples no caso dos escorpiões.
No vácuo de pesquisas e trabalhos práticos bem feitos sobre o controle de escorpiões, surgem também informações e práticas erradas sobre o emprego dos saneantes desinfestantes. Apenas com protocolos validados para o controle de escorpião acredito que conseguiremos aumentar a efetividade das ações contra os escorpiões e consequente proteção da população.
O controle de escorpiões é muito diferente de controle de baratas e formigas e se mal executado pode ampliar os riscos de acidente para a população próxima aos ambientes tratados. Talvez se estivesse claro que isso pode gerar inclusive consequências penais, com a responsabilização de quem executa tratamentos inadequados por acidentes e mortes geradas, não teríamos tantas ofertas e publicidade desse tipo de tratamento.
O fato é que não se aprende como planejar e implantar um programa de controle de escorpiões somente na compra do produto ou em palestras promocionais sem profundidade, é preciso estudar, se aperfeiçoar e investir para só então oferecer esse tipo de controle através da capacitação sistemática.
Implantar um programa de controle de escorpiões requer ações pré e pós-tratamento, adequação do ambiente, somadas a execução de ações ao longo de períodos não inferiores a 12 meses para se conseguir resultados consistentes e proteção adequada. Felizmente a equipe de Ministério da Saúde, especificamente do Núcleo de Animais Peçonhentos já esta trabalhando para aperfeiçoar o manual de controle de escorpiões e desenvolve estudos para ampliar as estratégias e abordagens para enfrentamento do problema.
Carlos V. Peçanha
Biólogo e Biomédico – Mestre em Saúde Pública
35 anos atuando no Segmento de Controle de Vetores e Pragas Urbanas.