Esqueçam tubarões, cobras, jacarés, leões, tigres, aranhas, escorpiões e que tais. O animal que mais mata seres humanos no mundo é o mosquito. Só de malária , transmitida por insetos do gênero Anopheles, são cerca de meio milhão de vítimas por ano. Isso sem contar a (infelizmente) velha conhecida dengue , agora acompanhada das “primas” zika e chicungunha , que tanto atacam os brasileiros, transmitidas pelos mosquitos do gênero Aedes, e a ressurgente febre amarela e a novata mayaro , que têm nos “selvagens” Haemagogus e Sabethes seus principais vetores, entre outras.
Diante disso, controlar as populações destes mosquitos é uma importante estratégia de prevenção. Mas além de combater seus criadouros, como as poças de água parada em pneus velhos, garrafas, vasos etc, durante décadas a única opção para isso eram os inseticidas químicos, como o DDT. Nos últimos anos, porém, os avanços da ciência em campos como a engenharia genética trouxeram outras alternativas .
É o caso, por exemplo, de um mosquito transgênico criado pela empresa britânica Oxitec . Designada OX513A , esta versão do infame Aedes aegypti traz em seu DNA um “cavalo de Troia” genético: uma disfunção metabólica que faz com que estes machos, ao cruzarem com as fêmeas selvagens, transmitam o defeito para a prole, que morre ainda na fase de larva. Como resultado, a população de mosquitos cai drasticamente.
Objeto de testes de campo nos quais milhões destes mosquitos machos foram liberados nas cidades baianas de Jacobina e Juazeiro , e posteriormente de iniciativas pontuais de controle nos municípios de Piracicaba e Indaiatuba, em São Paulo, e Juiz de Fora (MG), a estratégia mostrou seu valor, alcançando uma supressão, isto é, redução da população do Aedes que passou de 95% em alguns casos.
Sucesso e estratégia que agora estão em risco com a recente publicação de um estudo na revista Scientific Reports , periódico científico de acesso aberto do prestigiado grupo Nature. Encabeçado por Jeffrey R. Powell, geneticista da Universidade de Yale, nos EUA, o artigo – agora em processo de retratação, ou seja, de retirada dos anais da ciência, e reedição para eventual, ou não, republicação – afirmava ter encontrado sinais de hibridização dos mosquitos transgênicos da Oxitec com a população selvagem original de Jacobina após os testes de campo.
Até aí, tudo bem. Experimentos em laboratório prévios aos testes de campo já indicavam que o “cavalo de Troia” genético do OX513A não era 100% eficaz, com cerca de 2% a 4% dos mosquitos produzindo proles viáveis, embora frágeis e potencialmente estéreis. Assim, era de se esperar que ocorresse algum nível de hibridização das duas populações, sendo que a linhagem do experimento na Bahia – uma mistura de Aedes provenientes de México e Cuba, radicalmente diferentes dos originais baianos – foi escolhida, entre outras razões, justamente para permitir identificar até onde esta mistura iria em condições reais de aplicação da estratégia.
Mas a partir daí o estudo é uma sequência de erros e especulações que respectivamente não identificados e mal interpretadas deflagraram uma onda de notícias falsas e desinformação nas redes sociais que está gerando pânico entre alguns brasileiros, com afirmações de que os testes de campo produziram um “ supermosquito ” transgênico resistente a inseticidas e capaz de transmitir mais facilmente as doenças do Aedes.
A primeira falha do estudo está em afirmar em seu texto ter detectado uma crescente hibridização das duas populações, quando os dados da própria pesquisa, objeto de gráfico no mesmo, indicam na verdade um progressivo desaparecimento da população híbrida a partir do fim da liberação dos mosquitos transgênicos.
Mas mais graves são as especulações constantes tanto do abstract (resumo) quanto da discussão dos resultados do estudo que tal hibridização pode ter gerado uma população mais “robusta” de Aedes em Jacobina, quando, na verdade, os híbridos se mostram extremamente frágeis, como fica claro pelo seu progressivo desaparecimento que não foi acertadamente reconhecido na discussão de seus resultados.
A tais erros e especulações finalmente se juntou a má interpretação do estudo que gerou a onda de ‘fake news’ em torno dele. Sim, juntar as palavras “supermosquito” e “transgênico” gera manchetes que rendem cliques e compartilhamentos (como eu espero que seja o caso desta coluna), mas também pânico infundado (o que eu espero que esta coluna ajude a combater).
A verdade é que o estudo em momento algum identificou a transferência da transgenia dos OX513A para a população selvagem de mosquitos de Jacobina, e tampouco avaliou a resistência dos mosquitos híbridos a inseticidas, mencionando inclusive que a linhagem transgênica é especialmente suscetível a eles. Também em momento algum a pesquisa avaliou se os híbridos são mais ou menos capazes de transmitir doenças, novamente mencionando que experimentos com a linhagem transgênica não identificou qualquer diferença neste sentido entre ela e as populações selvagens de Aedes.
Coautora do estudo na Scientific Reports e uma das responsáveis pelo desenvolvimento da linhagem do mosquito transgênico usada nos testes de campo na Bahia, Margareth Capurro, professora do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da USP, lamenta só ter visto os erros da pesquisa após a publicação do artigo, cuja redação estava a cargo de Powell.
– Só notei depois que o estudo saiu publicado e reconheço os erros – disse em entrevista à coluna. – Falar que a hibridização teria deixado a população de Aedes mais robusta foi uma forçação de barra que gerou pânico e polêmica desnecessários. Muito pelo contrário, os híbridos são fracos, e não fortes, tanto que desaparecem. Por isso apoio a retratação e reedição do artigo.