Acanadense Carol Devine escreveu livros sobre a luta das mulheres pela independência do Tibet, montou museus na África para discutir os riscos do HIV e até liderou uma expedição civil até a Antártida para limpar a neve e o oceano de plásticos. Mas, como assessora humanitária da organização não-governamental Médicos Sem Fronteira (MSF), seus desafios duplicaram.
É que a entidade está preocupada com o impacto das mudanças climáticas na saúde das populações nos 70 países onde atua. Devine diz que a MSF está testemunhando ao vivo uma explosão de epidemias e crises humanitárias que certamente têm relação com o aumento da temperatura no planeta.
Nos países onde trabalha, a MSF verificou um aumento, por exemplo, nos surtos de malária, que cresceram de um milhão em 2010 para 2,5 milhões de casos nos últimos dois anos. Crescimento de ocorrências de zika, febre amarela e chikungunya também teriam relação com o aquecimento global.
“As mudanças climáticas exacerbaram doenças transmitidas por vetores, como malária e zika, além de doenças provocadas pela água, como cólera e febre tifóide. Assim como doenças não contagiosas, como problemas no coração e asma, em decorrência do impacto negativo em coisas básicas da vida, como ar limpo, água potável, comida e abrigo”, explica ela, que já trabalhou pela MSF em Ruanda, Timor Leste, Peru e Sudão do Sul. Devine esteve recentemente no Brasil para dar uma palestra no Encontro Internacional sobre Clima e Saúde, em Brasília.
Criada no norte de Ontário, a ativista ama a neve e o inverno, ao contrário de seus parentes e amigos. E, neste verão no hemisfério norte, o calor chegou a extremos. Com picos de calor em países desenvolvidos e tempestades violentas varrendo o mundo, a cientista social afirma que não há mais espaço para se discutir se é ou não o homem que tem provocado o aquecimento global. Comemora, por exemplo, que há poucos dias a rede BBC declarou que não quer mais entrevistar alguém que faça um contraponto a essa questão para equilibrar o debate climático, “da mesma maneira que você não teria alguém negando que o Manchester United venceu por 2 x 0 no último sábado”.
“Os eventos extremos da natureza dão prova suficiente do que está ocorrendo. Eu sinto que, nos últimos meses e anos, com todo o calor sem precedentes e tempestades extremas, há um grande despertar. Precisamos aproveitar isso, incluindo a combinação de tecnologia com ações inteligentes e éticas. As portas do ‘freezer’ da Terra estão abertas por assim dizer — os humanos as deixaram abertas — e agora não apenas temos que encarar isso, mas também trabalhar duro para mitigar os impactos severos que já sentimos”, afirma. Leia abaixo os principais trechos da entrevista à GALILEU:
Como as mudanças climáticas impactam a saúde das pessoas ao redor do mundo?
As mudanças climáticas impactam a vida das pessoas de forma séria e inequívoca. Há um consenso científico que nos mostra que um planeta mais quente eleva o nível dos oceanos, altera as precipitações e provoca extremas e fortes tempestades que produzem mais secas e ondas de calor, mais mortes e ferimentos e uma mudança nos padrões das doenças.
Os efeitos na saúde vão desde doenças provocadas pela poluição, altas taxas de desnutrição, malária e dengue, até problemas de saúde mental devido à doença, perda de meios de subsistência e lares, ou uma combinação de tais fatores. Embora os Médico Sem Fronteiras (MSF) provejam ajuda médica a pessoas que sofrem com epidemias, desastres e conflitos, e não costumamos normalmente identificar a raiz das crises humanitárias, nós estamos testemunhando em primeira mão e indiretamente como a mudança climática potencializa essas e outras crises — e estamos preocupados.
Então já é possível identificar o impacto do clima na saúde?
Os sintomas já estão sendo sentidos. Os cientistas já estão monitorando os impactos na saúde e o avanço do clima de acordo com indicadores como segurança alimentar e de abastecimento de água, migrações, poluição, doenças transmitidas por vetores e pela água.
Nós estamos preocupados, por exemplo, com o que ocorre na Somália e no leste da Etiópia, onde a seca severa está agravando a violência e a instabilidade nos últimos sete anos. Nessa região, no ano passado, nós vimos os mais graves casos agudos de desnutrição em crianças em 10 anos. Também no nordeste da Nigéria, a MSF tem visto casos severos de má nutrição em crianças e casos de surto de cólera e hepatite que, com certeza, foram exacerbados em decorrência das mudanças climáticas, migrações, conflitos devido à escassez de alimentos, tudo relacionado.
Nas Américas Central e do Sul, nós estamos muito preocupados com o impacto da degradação ambiental sobre a população em decorrência das consequências negativas da poluição provocada pela indústria, mineração e agricultura.
Que regiões e populações são as mais afetadas?
Em nosso trabalho em mais de 70 países, vemos que comunidades e populações de baixa renda são desproporcionalmente afetadas pela mudança climática. E elas contribuem menos para os problemas e têm menos recursos e infraestrutura para responder e se adaptar e, até mesmo, serem resilientes. Isso não é nada bom.
As regiões sensíveis ao clima incluem regiões de pradaria da América do Norte, Ásia, América Central e do Sul e áreas costeiras. No sudeste da Ásia, na África Ocidental e do Sul, na América Central e em partes do Oriente Médio, a MSF vê alguns problemas extremos de vulnerabilidade e saúde.
Como cidadãos comuns que também trabalham para MSF em todo o mundo, prestamos atenção também aos impactos climáticos em nossas próprias comunidades locais e países, como o Brasil e o Canadá. No Canadá, neste verão, tivemos registros extremos de calor. Eu li que o Brasil tem preocupações com calor e a disponibilidade de água, entre outras questões em nosso próprio país e em outros países.
Quais as doenças mais comuns que a mudança climática provoca no mundo? Tem crescido por causa disso casos de malária e doenças respiratórias?
As mudanças climáticas exacerbaram doenças transmitidas por vetores, como malária e zika, além de doenças provocadas pela água, como cólera e febre tifóide. Assim como doenças não contagiosas, como problemas no coração e asma, em decorrência do impacto negativo em coisas básicas da vida, como ar limpo, água potável, comida e abrigo. Evidências científicas mostram a ligação entre a variabilidade climática e a epidemiologia das doenças transmitidas por vetores.
O local onde a população vive, seja na área rural ou urbana, e a infraestrutura de saúde que o público tem acesso determinam também o grau de risco que esse povo enfrenta. A MSF tem respondido a inúmeras epidemias de malária, febre amarela, dengue e chikungunya nos últimos anos. A MSF viu os casos de malária crescerem da casa do um milhão em 2010 para mais de 2,5 milhões nos últimos dois anos. Isso nos coloca em alerta.
Nós também atendemos casos de doenças não transmissíveis como diabetes, hipertensão e problemas cardiovasculares em dezenas de países. Em lugares como o norte da Jordânia, Iraque e Zimbábue, a MSF trata outros tipos de doenças que são “assassinas silenciosas”.
Qual é o desafio para a MSF frente a este cenário?
Sabemos que o combate às alterações climáticas é uma grande oportunidade para a saúde no mundo. Este foi o recado da Comissão Lancet sobre Saúde e Mudanças Climáticas em 2015, uma respeitada associação médica. Eu me senti muito mais esperançosa e motivada do que no comunicado de 2009, quando foi dito que as mudanças climáticas são a maior ameaça à saúde global do século 21.
Como médicos em uma entidade humanitária, apresentando fatos e tendências sobre essas crises, nós vemos um maior encorajamento e engajamento na ação contra as mudanças climáticas. A saúde e o bem-estar das pessoas podem se beneficiar da ação global comprometida e séria de todos os setores versus o status quo, ou pior, das temperaturas mais altas e dos problemas que estão previstos.
Quais as principais ações da MSF em referência às influências negativas das mudanças climáticas na saúde?
Continuaremos fazendo nosso serviço humanitário a todos que precisam. O que mudou é que nós não podemos ignorar que a mudança climática já está elevando as necessidades e o sofrimento das pessoas. Nós e os sistemas humanitários e de saúde já estamos sobrecarregados e com poucos recursos. Isso é muito sério.
Estamos pensando agora: como nos preparamos para epidemias novas, eventos climáticos extremos ou conflitos? Quais recursos, humanos e financeiros, precisamos? E, quanto à nossa pegada ambiental, já estamos pensando em nossa necessidade de diagnosticar e mitigar isso. Podemos continuar fazendo nosso trabalho e também pedir ampla colaboração, ação séria e recursos.
Esse é um problema global e as soluções serão globais. Precisamos continuar pensando nas pessoas que estão na linha de frente da crise climática e nas crises humanitárias mais afetadas — e apelar para que os maiores responsáveis tomem medidas reais e urgentes.
A cobertura especial da GALILEU no relatório do clima conta com o apoio institucional de ClimaInfo.