Nos últimos cinco anos, equipes da Superintendência de Controle de Endemias encontraram 135 insetos transmissores do protozoário causador da doença de Chagas em municípios da Grande São Paulo. Desses, 30,8% estavam infectados. Por enquanto, o risco de contaminação é pequeno.
Ainda não há casos da enfermidade registrados em seres humanos, mas as análises de laboratório na Sucen indicaram que os insetos capturados, conhecidos como barbeiros, alimentaram-se de sangue humano e de animais, como aves, roedores, gambás, cães e gatos. “Precisamos ficar atentos para evitar a transmissão para pessoas”, diz o biólogo Rubens Antonio da Silva, pesquisador científico e coordenador técnico do programa de controle de doença de Chagas da superintendência.
Ao identificar um barbeiro em Pirapora do Bom Jesus, a 61 km da cidade de São Paulo, e outro em Taboão da Serra, a 18 km da capital, em 2015, Silva e sua equipe pensaram que poderia se tratar de episódios esporádicos. A conclusão se desfez quando atenderam outros chamados de moradores de Taboão da Serra nos anos seguintes e, em 2018, também de Carapicuíba, Embu das Artes, Itapecerica da Serra e bairros da zona oeste de São Paulo. Em 2019, Juquitiba e Santana de Parnaíba reforçaram a lista de municípios com relatos de barbeiros.
Em Carapicuíba, os pesquisadores identificaram colônias com 57 insetos vivendo em ninhos de gambás no telhado de três casas de condomínios cercados por matas –nenhum deles estava infectado.
Em Taboão da Serra, porém, 47% dos barbeiros estavam infectados com Trypanosoma cruzi, o protozoário causador da doença de Chagas. Em uma casa em Embu das Artes, havia fêmeas com ovos embaixo do colchão sobre o qual dormiam os moradores, que não foram contaminados, de acordo com os exames feitos até agora.
Enquanto cresce pela primeira vez na região metropolitana de São Paulo, a população de barbeiros tem caído no interior do estado: o total de insetos capturados diminuiu de cerca de 6.000 em 2007 para aproximadamente 2.000 em 2018, como Silva descreve em um artigo publicado em abril de 2019 na revista Brazilian Journal of Health Review. De acordo com o Ministério da Saúde, o estado de São Paulo registrou apenas um caso novo de pessoa com doença de Chagas em 2016 e dois em 2017. Nesses dois anos, o número de casos novos passou de 20 para 320 no Pará e de 3 para 24 no Amapá, estados que concentram a maioria dos relatos.
Em 2006, o Brasil recebeu da OMS (Organização Mundial da Saúde) certificação internacional por ter praticamente eliminado o barbeiro Triatoma infestans, a principal espécie transmissora da doença, hoje restrita a regiões da Bahia e do Rio Grande do Sul.
No entanto, em consequência da intensa transmissão até meados do século 20, estima-se que entre 1,2 milhão e 4,6 milhões de pessoas no Brasil tenham a forma crônica da doença de Chagas, com cerca de 6.000 mortes por ano, principalmente por insuficiência cardíaca, que afeta cerca de 30% das pessoas com o parasita, de acordo com a OMS.
Atualmente a espécie de barbeiro que mais preocupa é Panstrongylus megistus, por ser capaz de viver tanto em matas quanto em espaços domésticos. P. megistus tem o corpo marrom com manchas vermelhas e 2,5 cm a 4 cm de comprimento. Atraído pela luz, o inseto pode entrar nas casas por portas ou janelas abertas. Os barbeiros se infectam com T. cruzi ao se alimentarem do sangue de animais que o abrigam sem desenvolver a doença, os chamados reservatórios naturais, como gambás, morcegos, tatus, macacos, preguiças, pacas, capivaras, cães e gatos.
Até agora os registros de P. megistus na região metropolitana paulistana eram esparsos. De 1999 a 2017, 15 exemplares foram capturados na cidade de São Paulo. Apenas dois insetos foram examinados: o coletado em 2011 no Jabaquara, zona sul, estava infectado com T. cruzi, e o de 2014 no Sacomã, na região sudeste, não tinha o parasita, de acordo com um levantamento realizado pelo biólogo Walter Ceretti Junior, da Faculdade de Saúde Pública da USP, publicado em julho de 2018 na Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo.
“Com o desmatamento, roedores e gambás aproximam-se das casas em busca de abrigo e alimento”, diz Ceretti Júnior. “A possibilidade de a transmissão do parasita sair do ciclo silvestre e se expandir para áreas urbanas é no mínimo preocupante”, diz o médico epidemiologista Guilherme Werneck, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Em 2018 e 2019, as equipes da Sucen registraram P. megistus em áreas próximas a matas de quatro bairros da zona oeste da capital: Jardim Amaralina, Cohab Raposo Tavares, Jardim Esmeralda e Butantã. Examinando os locais de ocorrência de barbeiros nos últimos anos, concluíram que os insetos podem estar se movendo, aproveitando conexões de matas e parques, a partir da região entre as rodovias Régis Bittencourt e Raposo Tavares. “Se de fato houver uma expansão territorial dos insetos transmissores, a situação tende a se agravar”, comenta Silva.
Segundo ele, se a hipótese estiver correta, como os insetos se reproduzem mais intensamente no verão, no final de 2019 os moradores de bairros da zona norte como o Tucuruvi, perto do Parque da Cantareira, e da zona sul, próximos ao zoológico de São Paulo, devem encontrar insetos perto ou dentro de suas casas. O plano de ação da Sucen inclui comunicação com os moradores de Cotia, Osasco, São Bernardo do Campo, Santo André e Ribeirão Pires, possíveis áreas vulneráveis.
“Temos de evitar a formação de colônias, como em Araçatuba”, comenta Silva. Em 2017, foram coletados 565 adultos e 1.183 ninfas de barbeiros da espécie Rhodnius neglectus em dezenas de palmeiras das ruas e praças dessa cidade do noroeste do estado de São Paulo. Segundo ele, embora os barbeiros não estejam infectados, o que se teme é que um gambá contaminado, por exemplo, escale as palmeiras em busca de ovos das maritacas e transmita o parasita aos insetos.
“A identificação de barbeiros em áreas urbanas reforça a necessidade de alertarmos para o risco, ainda que pequeno, de transmissão para seres humanos”, comenta o biólogo José Eduardo Tolezano, diretor do Centro de Parasitologia do Instituto Adolfo Lutz.
A chamada transmissão vetorial, por meio dos insetos infectados pelos protozoários, hoje responde por 9% dos casos humanos registrados no país pelo Ministério da Saúde. Em 18% das ocorrências, a forma de transmissão do parasita não é identificada. Predomina atualmente a transmissão oral (72%), por meio do consumo de alimentos ou bebidas com fezes dos insetos contaminadas com o parasita.
Em abril deste ano, um estudo da Fundação de Medicina Tropical, publicado na Emerging Infectious Diseases, relatou dez casos de pessoas que apresentaram os sintomas iniciais da doença de Chagas –febre, dor de cabeça e fraqueza– depois de terem tomado suco de açaí contaminado com T. cruzi, em 2017 e 2018.
Também em abril deste ano, foi relatado um episódio de origem ainda incerta. De um grupo de 77 pessoas que participou de um retiro religioso durante a Semana Santa, em Ibimirim, no sertão pernambucano, 31 foram diagnosticadas com doença de Chagas, contraída possivelmente por alimento ou bebida contaminada. Elas começaram a ser tratadas com o medicamento benznidazol, eficaz no controle da fase aguda da doença, mas com fortes efeitos colaterais, como reações alérgicas cutâneas, enjoos e vômitos.