Técnicos da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) recolheram um grupo de morcegos na Travessa da Paz, próximo ao Parque da Redenção em Porto Alegre, na tarde de quinta-feira (27). O caso, aparentemente criminoso, chamou a atenção de moradores e profissionais da área de biologia e meio ambiente como uma amostra da situação grave enfrentada por estes animais na Capital.Os morcegos foram encontrados primeiro no começo da tarde por uma pedestre que estava passando pelo local. Alba La Rosa relatou ao Jornal do Comércio que viu “um morcego se arrastando, outro ensanguentado, outro com a asa quebrada, outro tentando voar e caindo, a calçada estava tomada. Eu contei trinta morcegos pequenos”, afirmou. “Tinha sangue na calçada, e aquela quantidade de morcegos pequenos tentando voar, uma cena horrível”. Ela contou um total de trinta animais dispersados no local. Eles foram encontrados de frente a um prédio, mas ninguém no local soube informar a ela se alguma forma de extermínio foi utilizada.
Após contato com a Smamus, responsável pelo controle da área de animais e preservação, técnicos vieram em torno das 16h recolher os morcegos. De acordo com Soraya Ribeiro, chefe da equipe de fauna da pasta, há um boletim de ocorrência feito por uma outra pessoa que também passou pelo local e fez uma denúncia, e que avisou que uma parte desses animais foi recolhida previamente por alguém ainda não identificado. “Muitos animais mortos e sendo colocados em sacos ainda vivos, foi o que a pessoa nos informou”, afirmou. No fim, os técnicos levaram oito animais vivos e cinco mortos. “Os oito recolhidos vivos sobreviveram e voaram, e os mortos tinham muitas fraturas. Isso pode ter sido das pessoas varrerem eles ou baterem neles, foram muito agredidos”. Ainda não se sabe se o veneno foi colocado primeiro e depois os animais foram mortos de maneira violenta, ou se a morte de parte deles foi decorrência do veneno, e os danos físicos ocorreram depois. O departamento vai terminar de montar o laudo técnico nesta segunda-feira (31) e encaminhar à direção da pasta, que pode pedir a abertura de uma investigação. Soraya alerta para o risco para a saúde pública que representa esse tipo de violência contra morcegos. “Se um desses animais está doente e é comido por um gato ou cachorro, imagina o que pode acontecer.
Esses animais não necessariamente tem raiva, mas se tivesse, qualquer gato ou cachorro que comesse espalharia a doença”, diz Soraya. Ela alerta que há outras formas não-violentas, e portanto não criminosas, para lidar com os animais. “Se a pessoa tem um morcego no forro, espera fevereiro e março, que é quando eles começam a ir embora, e aí fecha o forro de casa. [Agredir morcegos] é risco para os animais, risco para as pessoas. Caso existisse algum animal doente, ele estaria disposto a qualquer um pegar”, afirma.
A suspeita, de acordo com a bióloga e doutora em zoologia Susi Pacheco, que trabalha com os animais há mais de 30 anos, é de que os animais tenham sido vítimas do uso de um veneno específico para o abate de morcegos e outros animais aéreos. Os técnicos da Smamus retiraram uma espuma e pó brancos dos animais, similar a um produto que supostamente ajuda a afastar morcegos mas que causa graves danos à saúde. Segundo Susi, que é especializada em morcegos e atua no Instituto Sauver, há casos crescentes de envenenamento e extermínio de morcegos em Porto Alegre nos últimos 25 anos, o que levou à observação da redução da população destes animais e, em decorrência disso, ao aumento de colônias de mosquitos e outros insetos.
Susi alerta que morcegos são responsáveis pelo controle de diversos animais, e sua diminuição na natureza urbana pode acarretar em mais mosquitos, responsáveis pela transmissão de viroses, protozoários e helmintos, e de suas larvas, o que pode aumentar a proliferação de doenças. Segundo ela, morcegos são parte fundamental da fauna urbana, e sua presença no telhado de residências configura risco muito menor do que o que eles podem causar se ausentes da natureza. Em entrevista ao Jornal do Comércio, a bióloga explica os hábitos dos morcegos de Porto Alegre, e a situação atual deles no ecossistema da Capital:
Jornal do Comércio – Qual o papel dos morcegos no equilíbrio ambiental nas cidades?
Susi Pacheco – Morcegos são responsáveis, tanto nas áreas urbanas como rurais e naturais, pelo controle populacional de invertebrados, dispersão de sementes e polinização de plantas úteis ao homem, tanto em termos de extrativismo vegetal, como uso de madeira, quanto como frutos e espécies consideradas medicinais. No caso do controle populacional de invertebrados, há espécies de morcego que se alimentam de escorpiões, aranhas marrons e lacraias, algumas espécies peçonhentas, além de insetos como baratas, cupins (em sua forma adulta e alada que se reproduz entre final de novembro e meados de janeiro), baratas, mosquitos, besouros e comedores de portas e móveis como as brocas.
Jornal do Comércio – Existe legislação específica que impeça o extermínio de morcegos em áreas urbanas?
Susi Pacheco – Sim, existe a lei nº 5197/1967, que é Lei Federal de Crimes Contra a Fauna Silvestre. Porém, quantas pessoas são multadas, presas, ou pagam por esses crimes? Somente vão aprender quando ficarem doentes, famintas ou tiverem perdas econômicas significativas. Hoje sabemos que houve, em 30 anos, uma perda de 8 milhões de morcegos apenas em Porto Alegre, e o resultado é a presença de dengue, zika, chikungunya, leishmaniose e diversas viroses transmitidas a animais domésticos e pessoas pelos mosquitos em especial. Assim como morcegos, quase inexistem anuros, rãs, sapos e pererecas para controlar insetos e outros invertebrados, e corujas também são mortas por serem consideradas de mau agouro.
Jornal do Comércio – Quais espécies de morcegos existem em Porto Alegre e seus hábitos alimentares?S
usi Pacheco – São mais de 40 espécies, e quatro famílias: duas comedoras de insetos, uma família com hábito alimentar variado e onívoro, e uma família que se alimenta de insetos e peixes pequenos. A maioria é insetívora, ou seja, se alimentam.de invertebrados: mosquitos, cabeças de barata, besouros coleoptera, mariposas adultos e formas jovens como lagartas. Há espécies que comem escorpiões e aranhas, entre elas a loxosceles, gênero da aranha marrom. Morcegos são fundamentais para o equilíbrio ecológico das áreas urbanas, rurais e naturais, e apesar de algumas espécies de formarem colônias em telhados, as chances de transmitirem zoonoses ou mesmo raiva é infinitamente menor do que a falta deles pode causar ao ser humano. Quando se tem morcegos em telhados é preciso saber qual a espécie, pois cada espécie tem comportamento distinto e formas de exclusão variadas. E a maioria só permanece no telhado entre outubro e abril, depois dispersam.
Carlos Villela