A ameaça da dengue vem de um vetor pequeno, quase invisível. Quando o Aedes aegypti pica, causa desconforto pelo corpo, febre, cansaço, dificuldades para respirar e uma série de outros sintomas que, se não tratados corretamente, podem levar à morte. “Tenho muito medo do que pode acontecer. A cada dia que passa, eu estou piorando. O sofrimento é insuportável, pois dói tudo. Não aguento mais os incômodos nos olhos e na cabeça”, desabafa Antônio Otávio Magalhães, 56 anos, que dificilmente ia ao médico e tinha uma saúde de ferro.
Situações como a do carpinteiro tornaram-se cada vez mais comuns em 2019. Por conta da dengue, seis pessoas perderam a vida no Distrito Federal nos três meses deste ano — mais do que em todo o ano de 2018, quando houve uma morte por dengue. Além dos episódios fatais, a estatística de casos prováveis evidencia a situação alarmante que vivem as 31 regiões administrativas do DF por conta da proliferação do mosquito. De janeiro a março, as ocorrências da enfermidade superaram os registros de todo o ano passado.
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Segundo levantamento da Secretaria de Saúde, até 16 de março, foram confirmados 3.754 casos de dengue — nos 12 meses de 2018, a pasta notificou 2.463. Se comparada ao primeiro trimestre do último ano, a diferença é ainda mais exorbitante: entre janeiro e março de 2018, 542 casos prováveis de dengue foram registrados no DF — número 592% menor. “A gente não tem noção do quanto a dengue é perigosa até contraí-la. A partir de agora, serei ainda mais cuidadoso no combate ao mosquito. Espero que mais pessoas tenham essa consciência e não passem o que estou passando”, alerta Antônio Otávio.
Segundo especialistas, eliminar as condições de reprodução do Aedes aegypti é a medida mais efetiva contra a doença. “A participação da população no controle dos focos do vetor é fundamental”, orienta o médico sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Brasília, Cláudio Maierovitch. Ele alerta que a falta de mobilização no combate ao mosquito é um dos motivos para o crescimento dos casos prováveis e das mortes em 2019. “Depois das grandes epidemias de dengue em 2015 e 2016, o esforço para conscientizar as pessoas tornou-se menos intenso”, destaca.
O médico diz que os índices deste ano são preocupantes e podem ser explicados também por fatores climáticos. “Todo ano temos período de chuvas e secas, mas a questão é que, quando as chuvas se intercalam com o sol, facilitam que o mosquito complete o ciclo”. De acordo com números do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a chuva caiu com menos abundância no DF neste ano. Enquanto nos três primeiros meses de 2018 o índice de precipitação foi de 664,9 milímetros, entre janeiro e março de 2019, choveu apenas 492mm. “Quando você tem chuva o tempo todo, todos os recipientes expostos são lavados naturalmente, então as larvas morrem”, explica Maierovitch.
Focos
O vendedor Gabriel Paiva, 25 anos, afirma que foi contaminado com o vírus da dengue por causa do descuido de pessoas que vivem ao seu redor. “No meu trabalho, costumo almoçar em uma área nos fundos da empresa e lá sempre encontro muita água parada. Creio que fiquei doente por conta disso”, lamenta.
Gabriel mora e trabalha no Itapoã, região administrativa com uma das mais altas taxas de casos confirmados no DF neste ano. Junto ao Jardim Botânico, Paranoá e São Sebastião, a cidade faz parte da região de saúde leste, onde foram contabilizadas 1.261 ocorrências de contaminação da enfermidade. Nessa região, a incidência é de 521,95 registros de dengue por 100 mil habitantes — no DF, a estatística é de 121,04 por 100 mil habitantes.
Há mais de uma semana, Gabriel sente os efeitos severos da doença. São fortes dores pelo corpo, principalmente no abdômen. Por conta da dengue, a quantidade de plaquetas — células responsáveis pelo processo de coagulação sanguínea — no organismo do rapaz baixou para 120 mil. Uma pessoa saudável tem entre 150 mil e 450 mil plaquetas. “No início, vomitei bastante e senti muita febre. Estou me recuperando, mas ainda me sinto mal.” Para Gabriel, a população deveria ser mais consciente. “Temos que pensar no coletivo. Se eu falho na prevenção, outra pessoa pode acabar pagando o preço. Portanto, todo o DF deve se unir nessa batalha.”
A professora voluntária Lucenir Azevedo, 40, também vive no Itapoã e teme entrar para as estatísticas. Desde o início da semana passada, ela se queixa de fortes dores no corpo e de febre. Na quarta-feira, procurou uma unidade básica de saúde, onde foi medicada com soro. No entanto, os sintomas persistem. “Não me alimento direito há dias. Isso é terrível. Qualquer coisa que eu faço me causa desconforto”, comenta. Lucenir faz a sua parte no enfrentamento ao Aedes aegypti, mas percebe que as condições da cidade são um atrativo para a proliferação do mosquito.
“Minha casa é bem pequena e evito deixar água parada. Mas, no Itapoã Parque, por exemplo, tem muito lixo acumulado. Como lá não é asfaltado, os carroceiros descartam bastante coisa e, quando chove, acumula água. Imagino que isso pode contribuir para que os casos de dengue continuem subindo”, opina.Continua depois da publicidade
A professora tem razão, segundo o médico sanitarista Maierovitch. “O alto número de casos registrados no Itapoã, Paranoá e em São Sebastião tem a ver com a maneira como a população e o espaço urbano se organizam. Esses fatores influenciam diretamente na proliferação dos mosquitos. No Itapoã, em especial, como a comunidade vive mais aglomerada, a transmissão da dengue é mais fácil.”
Três perguntas para Marcos Obara, professor de epidemiologia da UnB
Quais são as razões para o aumento dos índices em 2019?A dengue é uma doença multifatorial, não tem uma única causa. As razões englobam vários motivos, como a situação socioeconômica de uma cidade e as mudanças climáticas. Questões como urbanização desordenada, falta de saneamento básico e uma coleta seletiva inadequada somam-se a fatores ambientais, como chuvas em abundância, umidade alta e temperaturas elevadas.
O aumento de casos confirmados e mortes pela dengue podem servir de alerta para a população?Sim, esses números são importantes para as pessoas se conscientizarem de que essa é uma doença que, dependendo da gravidade, pode evoluir para óbito. Além disso, eles são fundamentais para alertar as autoridades sanitárias, que devem reforçar o controle e o monitoramento da espécie a fim de que a proliferação do mosquito seja contida.
Quais devem ser os cuidados da população?É fundamental que os moradores mantenham os quintais limpos. A atenção deve ser redobrada nos domicílios abandonados, que tendem a acumular mais criadouros. Limpar caixas d’água e calhas também são medidas de proteção. Outra recomendação é o uso de repelentes, principalmente por mulheres gestantes, em razão do zika vírus. A ajuda da população é fundamental para o controle do mosquito, caso contrário, ficamos muito vulneráveis. Quem não remove lixo e não retira dos quintais os recipientes com água parada favorece a proliferação do Aedes aegypti.
Cuidado!Os sintomas: A dengue clássica é a forma mais leve da doença, sendo muitas vezes confundida com gripe. Tem início súbito e os sintomas podem durar de cinco a sete dias, apresentando sinais como febre alta (39°C a 40°C), cansaço, dores de cabeça, musculares e nas articulações, indisposição, enjoos, vômitos, entre outros.
Palavra de especialista
Responsabilidade de todos“O desleixo da população no combate à dengue pode ter contribuído para o aumento de casos. Quando viemos de uma época em que não são registrados tantos incidentes — como foi em 2018 —, há uma queda nas ações de prevenção contra o mosquito. No entanto, a sociedade deve se preparar e se cuidar muito mais, pois podemos estar em meio a uma epidemia alarmante.Quem contraiu dengue tem de redobrar os cuidados. O mosquito atinge pessoas mais frágeis. Os riscos são maiores para qualquer um que for submetido ao vírus da doença mais uma vez. Portanto, a recomendação é que, ao sentir os primeiros sintomas, o paciente procure um médico regularmente. Afinal, as complicações não começam nos primeiros dias, mas sim, depois do quinto dia, quando a pessoa acha que está melhorando.Mais do que nunca, as ações de precaução mostram-se necessárias. É fundamental evitar os criadouros, não deixando água parada em pneus e garrafas, principalmente. Além disso, observar se existem focos nos terrenos dos vizinhos e alertá-los sobre o perigo da proliferação do mosquito. Combater a dengue é uma responsabilidade de todos.”Alexandre Cunha, médico infectologista e vice-presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal
Para saber mais
Monitoramento das áreas de risco
Controlar a quantidade de imóveis com a presença de recipientes com larvas de Aedes aegypti é mais uma estratégia da Saúde no combate ao mosquito. Em fevereiro, por exemplo, agentes da pasta vistoriaram 26.632 imóveis em todo o DF e encontraram focos do vetor da dengue em cada uma das 31 regiões administrativas, principalmente em recipientes de armazenamento de água para consumo humano, como caixas d’água, filtros, barris etc.
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Mesmo assim, a secretaria diz que o índice de infestação predial na capital está sob controle. Hoje, a estatística é de 0,83% (valores até 1% são considerados satisfatórios. Números entre 1% e 3,9% representam estado de alerta, enquanto os superiores a 3,9% indicam risco). De qualquer forma, a Saúde reitera que a prevenção não pode parar.
“Permanece o alerta para que a população se comprometa a buscar e eliminar os locais que possam servir como possíveis criadouros para o mosquito Aedes aegypti, principalmente durante o período de chuvas. Quando o criadouro é eliminado, deixam de existir os requisitos para o desenvolvimento do ciclo de vida do mosquito”, destaca a pasta, em boletim informativo.
Quadro é grave e requer atenção
A situação é considerada delicada pelo governo, tanto que em janeiro o GDF montou uma força-tarefa para prevenir e combater a dengue. Além da força humana de agentes de vigilância e de bombeiros militares, o Executivo usa drones para mapear os locais de maior infestação do Aedes aegypti e tentar reduzir a quantidade de casos.
“Estamos intensificando as ações em campo e orientando moradores. A recomendação básica é não deixar a água parada de forma alguma. Qualquer objeto pode virar um foco do mosquito. Recipientes que acumulam água como pneus, caixas d’água abertas, latas de tinta, cascas de ovo, copos plásticos, garrafas destampadas, entre outros, não podem ficar jogados à toa no quintal”, salienta o gerente de Vigilância Ambiental de Vetores e Animais Peçonhentos e Ações de Campo da Secretaria de Saúde, Edi Xavier de Faria.
As ações da pasta também visam ensinar à população a maneira correta de descartar lixo para evitar possíveis criadouros do mosquito. Além disso, em parceria com o Sistema de Limpeza Urbana (SLU), a Saúde promove manejos ambientais para recolher materiais sem uso nas casas — como fogão, latões, pneus, sofás velhos e telhas —, e transportá-los para a Unidade de Recebimento de Entulhos, antigo Lixão da Estrutural.
“Nas cidades com maior circulação viral, fazemos ações corretivas para matar os mosquitos. Usamos equipamentos de fumacê e pulverizadores costais. Temos a expectativa de que, nos próximos meses a situação se estabilize”, prevê Edi Xavier, que pede a ajuda da população. “As ações dos moradores interferem bastante. Todos sabem que a dengue é um grande problema e como a doença é transmitida, mas muitos ainda não se importam. Precaver-se é a forma mais eficaz de combatermos essa enfermidade.”
Trabalho em campo
Semanalmente, a Vigilância Ambiental da Secretaria de Saúde, o Corpo de Bombeiros e o SLU promovem ações preventivas em diferentes regiões administrativas do DF. Desde janeiro deste ano, as equipes vistoriam casas e terrenos nos locais com maior incidência de casos prováveis de dengue. Entre 18 e 25 de março, por exemplo, foram encontrados 27 focos do mosquito apenas em São Sebastião.
Um dos objetivos é orientar a população sobre as doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. No entanto, ainda há resistência por parte de alguns moradores. “Muita gente recusa receber nossas visitas. Neste ano, mais de 400 pessoas não nos atenderam e isso é preocupante, pois acredito que possa influenciar no alto número de casos da doença”, alerta o tenente-coronel do Corpo de Bombeiros, Deusdete Vieira.
De segunda a sexta-feira, 40 bombeiros participam da força-tarefa e visitam pelo menos 200 imóveis. Aos sábados e domingos, o trabalho é intensificado e conta com 400 profissionais. A meta é vistoriar entre 2 e 3 mil residências por semana. A partir de amanhã, as cidades da região de saúde centro-sul (Núcleo Bandeirante, Riacho Fundo I e II, Park Way, Candangolândia, Guará, Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), Setor Complementar de Indústria e Abastecimento (SCIA) e Cidade Estrutural) receberão as ações.
“Isso será fundamental para os moradores daqui. Nós vivemos sob risco”, resume o cabeleireiro Almirante Pereira, 44, que mora na Chácara Santa Luzia, na Cidade Estrutural. Há duas semanas, ele contraiu dengue. Ficou de repouso por cinco dias, sofrendo com as consequências da enfermidade. “Pensei que iria morrer. A qualquer movimento, meu corpo acusava alguma dor. Foi a primeira vez que peguei dengue, e espero que tenha sido a última”, afirma Almirante.
Ao lado da mulher — que também já foi contaminada pelo Aedes aegypti — e o filho, Almirante faz de tudo para evitar que o mosquito se prolifere no seu quintal. Entretanto, por não ter nenhum controle sobre o que acontece fora da sua residência, fica preocupado. “O problema é que a cidade, principalmente esta região da Chácara Santa Luzia, carece de infraestrutura. Assim, fica difícil lutar contra o mosquito”, reconhece. “Mesmo assim, temos de continuar contribuindo, mesmo que seja com pouco. A dengue é um problema sério. Não podemos descansar”, completa o cabeleireiro.
* Estagiária sob supervisão de José Carlos Vieira