As mudanças climáticas já são uma das principais urgências de saúde pública no mundo e ameaçam minar os avanços dos últimos 50 anos no setor. O aumento da temperatura tem levado a uma redução na produtividade no trabalho, a um aumento no número de desastres climáticos e na capacidade de transmissão de doenças, como a dengue, por mosquitos.
Essas são as principais mensagens de um relatório sobre os impactos das mudanças climáticas na saúde humana publicado nesta segunda-feira, 30, pela prestigiosa revista científica Lancet.
O Lancet Countdown, resultado do trabalho de 24 instituições acadêmicas e agências governamentais de todos os continentes, traz um balanço válido para o mundo inteiro – houve poucas distinções específicas para países. Mas alguns dados encontram reflexo direto no Brasil.
É o caso da dengue. O trabalho revela que a capacidade do Aedes aegypti de transmitir a doença aumentou, globalmente, 9,4% desde 1950 como resultado do aumento das temperaturas. O cenário ficou mais acentuado a partir de 1990 – de lá para cá sua capacidade de transmissão cresceu 3%.
Menos citado no Brasil, o Aedes albopictus, que ocorre em áreas mais verdes, também se tornou mais apto a transmitir a doença em 11,1% desde 1950, ou 5,9% desde 1990.
O número anual de casos de dengue, de acordo com o levantamento, dobrou em cada década desde 1990, atingindo 58,4 milhões de casos em 2013 e 10 mil mortes em todo o mundo. “As mudanças climáticas vêm sendo apontadas como um potencial contribuinte para este aumento. Lembrando que os dois mosquitos também carregam outros importantes vírus, como febre amarela, chikungunya e zika, que provavelmente respondem de modo similar à mudança do clima”, destaca o sumário executivo do relatório, assinado por cerca de 60 pesquisadores na edição desta segunda da Lancet.
Vida real
“Um exemplo bem atual que temos no Brasil é o avanço da fronteira da febre amarela silvestre. Antigamente se tomava a vacina para ir para a Amazônia. Agora está se vacinando na zona Norte de São Paulo. Isso é fruto de mudanças no regime de chuvas e de temperatura que favorecem a eclosão do mosquito”, disse ao Estado o pesquisador Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da USP.
Ele não participou diretamente do trabalho, mas estará junto com uma das autoras, a sueca Sonja Ayeb-Karlsson, da Universidade das Nações Unidas, discutindo os resultados em evento nesta terça-feira no Instituto de Estudos Avançados da USP.
O relatório, comenta o pesquisador, tem a vantagem de aproximar da vida real das pessoas um problema que muita gente vê como algo distante e a longo prazo. Tanto ao mostrar os impactos diretos, mas também por sugerir que mudanças no estilo de vida e nas políticas públicas também podem ser boas tanto para o planeta quanto para a saúde dos seres humanos.
“A gente tem um discurso muito pouco realista sobre sustentabilidade. Diz para o cidadão comum que se ele deixar carro em casa, ficar no escuro à noite, tomar banho de canequinha, diminuir o consumo de carne, daqui a 80 anos vão começar a estabilizar os níveis de CO2 no planeta e o primeiro ser vivo beneficiado será o urso polar. Não acho que esse seja um argumento que atraia multidões”, reflete Saldiva.
“Mas dá para mudar esse discurso. Se deixar o carro em casa, em São Paulo, por exemplo, a pessoa vai caminhar, sem perceber, de 5 a 6 mil passos por dia. Vai perder peso, mais ou menos 350 gramas por mês, caso continue comendo a mesma coisa, e seus riscos de osteoporose e doença cardiovascular caem. As pessoas podem enxergar um benefício imediato na vida delas. Com isso podemos começar a mostrar que o que é sustentável numa política de longo prazo, climática, também é mais saudável no curto prazo com efeito local”, complementa.
Desigualdade
O relatório destaca que os impactos das mudanças climáticas vêm sendo sentidos de modo desproporcional no mundo, atingindo mais as populações vulneráveis e pessoas de países de mais baixa renda, o que piora as desigualdades.
A desnutrição foi identificada como o maior desses impactos sobre a saúde no século 21. O número de pessoas com subnutrição em 30 países da Ásia e da África passou de 398 milhões para 422 milhões desde 1990. Parte disso, afirmam os pesquisadores, se dá em decorrência dos impactos do aumento de temperatura e mudança nos regimes de chuvas sobre a produção agrícola. Os autores registram a queda de 6% na produtividade global do trigo e de 10% nas safras de arroz para cada aumento adicional de 1°C na temperatura global.
Outro alerta vem dos eventos extremos. O trabalho aponta que entre 2007 e 2016 ocorreram, em média, 306 desastres relacionados ao clima, principalmente enchentes e tempestades, um aumento de 46% desde 2000. E 125 milhões de adultos acima de 65 anos adicionais foram expostos a ondas de calor no mesmo período. Os autores estimam que até 2050, podem ocorrer quase 1 bilhão de eventos adicionais de exposição a ondas de calor.
Os danos já têm reflexos também na economia. Perdas econômicas ligadas a eventos climáticos extremos foram estimadas em US$ 129 bilhões apenas em 2016. O aumento da temperatura também já está está impactando a capacidade de trabalho. O clima mais quente já resultou em uma perda média 5,3% na produtividade de trabalhadores que fazem serviços manuais e externos em áreas rurais.
Em entrevista coletiva, os autores afirmaram que, apesar dos resultados, ainda há tempo para impedir danos ainda maiores. “Estamos apenas começando a sentir os impactos das mudanças climáticas. Qualquer pequena quantidade de resiliência que possamos ter como garantida hoje será esticada até o ponto de ruptura mais cedo do que imaginamos”, comentou Hugh Montgomery, copresidente do Lancet Countdown e diretor do Instituto de Saúde e Performance Humanas da University College London.
“Nós precisamos tratar a causa e os sintomas das mudanças climáticas. Há muitas maneiras de fazer as duas coisas que fazem um melhor uso dos orçamentos sobrecarregados da saúde e melhoram as vidas no processo “, disse.
“O relatório mostra o impacto que as mudanças climáticas estão tendo na nossa saúde hoje. Também mostra que atacar as mudanças climáticas diretamente, inequivocamente e imediatamente melhora a saúde global. É simples assim. Quando um médico nos diz que precisamos cuidar melhor da nossa saúde, prestamos atenção e é importante que os governos façam o mesmo”, defendeu Christiana Figueres, presidente do Conselho Consultivo de Alto Nível da Lancet e ex-secretária executiva da Convenção do Clima da ONU (UNFCCC).