A ameaça de epidemia que surge de nova espécie de mosquito Aedes detectada pela 1ª vez nas Américas

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AEDES - Pragas e Eventos
Foto: Reprodução Internet

Durante a noite de 18 de junho de 2019, na base americana em Guantánamo, Cuba, um intruso foi pego por uma armadilha.

Soldados dali estão acostumados a se preparar contra eventuais tentativas de fuga de prisioneiros. A base é conhecida como um lugar onde os EUA aprisionam, por tempo indeterminado e muitas vezes sem julgamento, suspeitos de envolvimento em planos extremistas na chamada “guerra ao terror”.

É incomum que um intruso seja avistado ali. E, para complicar, nunca ninguém havia visto um intruso daqueles naquela região.

Trata-se do Aedes vittatus, uma das 3,5 mil espécies de mosquitos encontradas ao redor do mundo – e, assim como o Aedes aegypti (transmissor da dengue e zika, por exemplo), capaz de carregar parasitas ou patógenos perigosos à saúde humana.

O perigo adicional é que o Aedes vittatus consegue carregar quase todas as perigosas doenças transmitidas por todos os mosquitos, com exceção da malária.

“Estar em contato próximo com esses mosquitos não é uma boa notícia”, diz Yvonne-Marie Linton, pesquisadora-diretora da Walter Reed Biosystematics Unit e curadora de quase 2 milhões de espécimes na coleção de mosquitos do Instituto Smithsonian, nos EUA.

O Aedes vittatus é endêmico no subcontinente indiano, na Ásia, e até agora nunca havia sido avistado no continente americano.

Ele é “comprovadamente um vetor de vírus de chikungunya, zika, dengue, febre amarela e muitas outras doenças”, segundo a equipe que o identificou.

O mais provável é que as primeiras espécimes tenham viajado para Cuba na forma de ovos em algum contêiner de navio ou em uma aeronave. Provavelmente, sua proliferação no Caribe e sul dos EUA será também intermediada pelo homem: as mudanças climáticas estão encurtando os invernos da América do Norte, permitindo que os mosquitos procriem muito mais vezes em uma única temporada – consequentemente, espalhando mais vírus.

Mosquitos chamam muito menos atenção do que, por exemplo, as chamadas “vespas assassinas” identificadas em 2020 na América do Norte. Originárias do Japão, elas se espalharam pela região do Pacífico Noroeste norte-americano, matando colônias de abelhas.

“Há um paralelo entre as vespas assassinas e o Aedes vittatus no fato de que vieram de fora – estão em uma área onde não existiam antes”, afirma Ben Pagac, entomologista do Comando de Saúde Pública do Exército americano, que conduz biovigilância na região do Caribe.

O deslocamento do mosquito, diz ele, é uma lição a respeito dos perigos que o comércio e as viagens humanas oferecem à dispersão de doenças zoonóticas pelo planeta.

Doenças transmitidas por mosquitos matam mais de 1 milhão de pessoas e infectam quase 700 milhões por ano – quase 1 em cada dez pessoas na Terra.

E seu efeito é historicamente devastador. O historiador Timothy C. Winegard, autor do livro O Mosquito, de 2019, acredita que esses insetos chegaram a ser usados como arma biológica: na guerra do Peloponeso, de 415 a 413 a.C., os espartanos atraíram os atenienses a pântanos repletos de mosquitos. “A malária matou ou incapacitou mais de 70% das tropas (atenienses)”, escreve Winegard.

Alguns dos guerreiros mais conhecidos da história foram mortos por doenças transmitida por mosquitos, como Genghis Khan e (segundo uma teoria) Alexandre, o Grande.

E, à medida que as mudanças climáticas deixam os invernos da América do Norte mais curtos e menos frios, Linton e seus colegas advertem em seu estudo que mosquitos podem, em breve, causar “epidemias que seriamente ameaçam a saúde pública”.

Uma guerra diferente

Militares americanos já enfrentam mosquitos desde a Segunda Guerra Mundial e pesquisam os insetos desde os anos 1950, afirma Linton.

“Mais soldados morreram na Guerra do Vietnã de doenças transmitidas por mosquitos do que em combate ou por tiros”, diz a pesquisadora. Mesmo hoje, “20 das 50 principais doenças que afetam os militares são transmitidas por vetores”.

Muitos dos quase 200 mil soldados americanos na ativa alocados no exterior estão em áreas tropicais onde nunca haviam estado antes, o que significa que não têm imunidade para os patógenos dessas regiões.

Quinhentos anos atrás, a situação era reversa. Foram Cristóvão Colombo e seus acompanhantes europeus que trouxeram os mosquitos ao chamado Novo Mundo, espalhando novos patógenos entre os nativos do continente americano.

“Cientistas concordam que as Américas passaram milhares de anos livres de malária até os europeus chegarem”, escreve Sonia Shah em seu livro The Fever (A Febre, em tradução livre).

Além disso, parasitas trazidos por colonos vindos da Inglaterra aos EUA nos anos 1600 se espalharam das pessoas aos mosquitos, e deles de volta às pessoas.

Navios que viajavam pelo Caribe carregavam mosquitos que transmitiam a febre amarela e a malária pela costa do Atlântico. Essas doenças foram devastadoras para as comunidades nativas, e também para colonos.

“Antes da Revolução (que levou à independência americana), havia ao menos 30 grandes focos de epidemia de febre amarela nas colônias britânicas norte-americanas, afetando todos os grandes centros urbanos e portos na costa que vai da Nova Scotia (província do Canadá) à Geórgia (Estado ao sul dos EUA)”, escreve Winegard.

Graças a pesticidas e medidas como drenagem de pântanos, as doenças transmitidas por mosquitos reduziram consideravelmente no século 20. No entanto, desde 1999, epidemias nas Américas voltam a colocar os mosquitos no centro das atenções.

Primeiro, foi o vírus do Nilo Ocidental, que passou de pássaros infectados a mosquitos e deles a humanos, matando centenas de americanos entre 1999 e 2003. Até hoje, são registrados centenas de casos por ano da doença.

Depois, temos a dengue, a chikungunya e a zika, este último causou uma epidemia em 2016, resultando no nascimento de centenas de bebês com síndrome congênita pelo vírus da zika no Brasil. Até o fim de 2016, segundo a OMS, 48 países e territórios do continente americano registraram mais de 175 mil casos confirmados da doença transmitida pelo mosquito no continente americano.

E a dengue infectou no Brasil, apenas no ano passado, mais de 970 mil pessoas, segundo contagem até novembro do Ministério da Saúde.

Eventos como a epidemia de 2013-14 da chikungunya no Caribe e a de zika no Brasil devem se tornar cada vez mais frequentes. E, quando se chega ao nível de uma epidemia, costuma ser tarde demais para contê-la.

“É algo inesperado. Acontece como foi com a covid-19. Pega todos de surpresa”, afirma Linton. E, quando governos reagem tentando comprar e distribuir insumos e medicamentos, se veem disputando esses itens entre si, ela agrega.

Daí a importância, ressalta a pesquisadora, em estarmos mais preparados, fazendo o que ela chama de biovigilância: “ativamente procurar por vetores que possam ser problemáticos”.

“Se você não conhecer seu inimigo, não conseguirá combatê-lo”, diz.

Esse é justamente o trabalho de Linton: identificar, classificar e avaliar os riscos causados por mosquitos a soldados americanos nos EUA e fora.

“E foi assim que descobrimos o (mosquito Aedes vittatus) em Cuba”, conta.

Aedes vittatus

Desde 2016, especialistas em medicina preventiva colecionam amostras de mosquitos encontradas ao redor da base de Guantánamo. A cada semana, é colocada uma armadilha, geralmente perto dos locais onde civis e militares dormem. A armadilha atrai os insetos com luz, e um ventilador os suga a um compartimento. Às vezes, são sugados até 3 mil insetos.

Depois de uma triagem, os mosquitos são enviados a um laboratório militar em Maryland, nos EUA, onde são analisados por pesquisadores.

Em junho de 2019, “olhando pelo microscópio, vimos que um deles parecia diferente”, explica Pagac.

“Tinha um padrão (de manchas brancas) no tórax que era completamente diferente de qualquer coisa que tivéssemos visto antes.”

Era o Aedes vittatus.

“Isso nos deixou de olhos esbugalhados: não era apenas algo estranho, mas que poderia ter sérias implicações de saúde.”

Imediatamente, Pagac alertou Linton.

A dupla então comparou o DNA desse espécime com o de outras populações de mosquitos e concluiu que sua provável origem é a Índia.

“Sabia que isso não era bom”, diz Linton. “Sabia que (o mosquito) era invasivo, nunca tinha sido visto nas Américas antes e é um vetor muito eficiente de dengue, chikungunya, zika e febre amarela.”

A descoberta do mosquito levantou uma questão importante: será que esse intruso em Guantánamo ser o culpado pelos surtos recentes de zika, dengue e outras doenças no Caribe?

Viagens globais

Para responder essa pergunta, Linton e sua equipe primeiro precisavam entender como o mosquito havia chegado a Guantánamo.

Eventos naturais, como furacões, são conhecidos por transportar mosquitos entre as ilhas caribenhas. Mas humanos, com seus caminhões, navios e aviões, podem inadvertidamente levar pequenos vetores de doenças como mosquitos de modo mais rápido e mais longe do que qualquer tempestade.

Linton e Pagac sabiam também que o Aedes vittatus é o que entomologistas chamam de “reprodutor em contêineres”.

“Seus ovos toleram a desidratação, podem ser levados de um lugar a outro e, assim que chegam em uma superfície de água, eles emergem”, conta Linton. “Se o clima for quente e úmido, eles sobrevivem.”

Essa característica fez Linton se recordar de outra espécie de mosquito que, 40 anos atrás, se espalhou da mesma maneira: o Aedes albopictus, o mosquito tigre asiático. No sul da Ásia, o mosquito havia sido vetor de dengue, febre amarela e chikungunya. Daí, em 1979, alguns de seus ovos foram transportados acidentalmente à Albânia em um carregamento de pneus usados, que costumam ficar largados em portos acumulando água, e criando um ambiente perfeito para o mosquito proliferar.

“Desde então, ele viajou e se estabeleceu em quase todos os países do mundo”, conta Linton.

Ela e seus colegas acreditam que possa estar acontecendo o mesmo com o Aedes vittatus. Cuba, afinal, é uma ilha – e contêineres de navios são perfeitos para transportar não só produtos, como ovos de mosquitos.

Como impedir o vittatus de avançar

Imediatamente após a identificação do mosquito, a Unidade de Medicina Preventiva da Marinha americana em Guantánamo começou a pulverizar inseticidas em duas áreas residenciais perto do local onde os primeiros espécimes foram encontrados. E também passaram a coletar mais amostras dos mosquitos, com a ajuda de armadilhas especiais.

Ainda assim, os mosquitos não pararam de aparecer. Em dezembro de 2019, larvas do Aedes vittatus foram encontradas a menos de 50 m do local original. Em laboratório, produziram dez espécimes masculinos e sete femininos. Em 24 de fevereiro de 2020, outra fêmea do vittatus foi encontrada na armadilha, seguida por outros quatro mosquitos em 2 de março, a 1 km do local original.

Em 18 de abril, o temor dos cientistas de que o mosquito pudesse se espalhar para além de Cuba se concretizou: o inseto foi identificado na República Dominicana, a 206 km de Cuba. E o mais alarmante é que esses espécimes não tinham a mesma composição molecular dos de Guantánamo, o que significa que parecem ter vindos por conta própria do Sudeste Asiático.

“Parece ter uma rota de comércio global trazendo esses mosquitos ao Caribe”, afirma Linton, que teme que outros espécimes do vittatus estejam “se escondendo bem diante dos nossos olhos” em outras ilhas caribenhas.

“Se ele está na República Dominicana, também com certeza está no Haiti (os dois países compartilham uma ilha)”, diz ela. “Presumimos que também esteja na Jamaica, Puerto Rico e pode já estar na Flórida” ou em outros Estados do sul dos EUA.

Se não houver ação rápida de equipes de saúde pública, pode ser apenas uma questão de tempo até que o mosquito se espalhe mais. Essa ação tem de incluir a destruição de ambientes onde o mosquito procria, a pulverização de químicos ou bactérias em águas paradas e o uso de armadilhas.

Mas parte do que torna os mosquitos tão difíceis de serem contidos é que “eles se adaptam ao habitat e aos objetos humanos”, explica Linton. “Colocamos fontes de passarinhos e piscinas infantis nos jardins, e ali o mosquito aparece.”

Para dificultar, o vittatus pica durante o dia, o que significa que métodos tradicionais – como fechar portas e janelas e usar mosquiteiros para dormir – são ineficientes.

E apenas pulverizar inseticida não vai resolver o problema, adverte Pagac. É preciso incorporar medidas ao dia a dia, como eliminar todos os locais que possam armazenar água parada.

Mudanças climáticas

A mudança climática acelerada pela ação humana também está ajudando o vittatus, que adora climas quentes e úmidos, a continuar a avançar.

Um mosquito costuma botar ovos 36 horas depois de picar sua vítima e, se esse hospedeiro estiver infectado, o vírus passará adiante. Em seguida, serão produzidos 100 a 120 ovos infectados, já carregando a doença.

Normalmente, há talvez seis novas gerações de mosquito ao longo de um ano qualquer. Mas isso está mudando.

“Esses invernos brandos e estações mais longas que estamos tendo significam que mosquitos têm a chance de produzir dez gerações (no ano), em vez de seis”, adverte Linton. “Isso significa que eles têm mais tempo de adquirir vírus” antes de serem impedidos pelo frio do inverno.

Os humanos, no entanto, não estão à deriva no combate. Processos de biovigilância como o sendo feito em Guantánamo podem ajudar a prever (e daí enfrentar) o local de onde as doenças se espalham. Mas a não ser que programas robustos e coordenados de biovigilância sejam implementados ao redor do mundo, quando de fato um novo vetor for encontrado, pode já ser tarde demais para contê-lo, diz Linton.

Um bom ponto de partida é focar em “hubs” de viagem. Em anos recentes, por exemplo, a Inglaterra registrou casos da chamada “malária de aeroporto” — casos de malária causados por mosquitos que chegaram ao país com aviões.

Hoje, aeroportos ao redor do mundo são equipados com armadilhas de luz para esses mosquitos.

Mas, mesmo assim, “atualmente há oito vezes mais pacientes de malária em clínicas e hospitais da Europa do que nos anos 1970”, escreve Shah.

Já no caso do Aedes vittatus, “pode ser um dos poucos exemplos em que (ainda) estamos na dianteira” para contê-lo, adverte Pagac. E financiamento a pesquisas permitiria monitorar e antecipar o avanço de mosquitos, para que então governos nacionais e locais possam pôr em prática campanhas com métodos conhecidos, como pulverização, combate a água parada e ensinamentos a pessoas sob risco (por exemplo, uso de repelentes e roupas que cubram braços e pernas).

Em um mundo abalado pela covid-19, tudo isso pode parecer um desafio complexo. Mas, para Linton e Pagac, não podemos deixar que seja uma oportunidade perdida para impedir a próxima potencial pandemia.

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