Piracicaba lidera casos de acidentes com animais peçonhentos em SP, mas tem apenas dois pontos com soro antiveneno

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escorpioes butantan - Pragas e Eventos

Com 1.834 ocorrências registradas em 2024 e uma área de 1,3 mil km², cidade conta com apenas duas unidades de saúde que oferecem tratamento para vítimas de picadas de escorpiões e outros animais peçonhentos

Escorpiões amarelos em recipiente de vidro do Instituto Butantan
Escorpiões capturados em Piracicaba são enviados ao Instituto Butantan para produção de soro antiescorpiônico | Foto: Comunicação Butantan

Piracicaba, município do interior paulista com 1.378 km² de extensão territorial, enfrenta um desafio preocupante na área da saúde pública: apesar de liderar o ranking estadual de acidentes com animais peçonhentos, a cidade conta com apenas dois pontos de distribuição de soro antiveneno para atender toda sua população. Este cenário evidencia a importância de medidas preventivas e controle de pragas eficiente em áreas urbanas.

De acordo com dados divulgados pela Secretaria de Estado da Saúde (SES) na última quinta-feira (15), Piracicaba registrou 1.834 casos de acidentes com animais peçonhentos em 2024, o maior número entre todos os municípios paulistas. Na sequência do ranking aparecem Ribeirão Preto, com 1.579 ocorrências, e Campinas, com 1.326 casos.

Apenas dois locais para atendimento de emergência

Apesar do elevado número de ocorrências, os soros antiveneno estão disponíveis em apenas duas unidades de saúde na cidade: o Hospital Santa Casa, localizado na Avenida Independência, 953, no bairro Alto, e a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Vila Cristina, situada na Rua Dona Anésia, 950, no bairro Jaraguá.

Fachada da UPA Vila Cristina em Piracicaba
UPA Vila Cristina é uma das duas unidades que oferecem soro antiveneno em Piracicaba | Foto: Isabela Borghese/Prefeitura de Piracicaba

A distribuição dos pontos de atendimento é definida pelo governo estadual. Segundo a SES, “os soros para tratamento das vítimas das picadas são disponibilizados em estabelecimentos de saúde estrategicamente distribuídos para que toda a população receba o atendimento adequado no prazo de 1 hora e 30 minutos após o acidente”.

No entanto, considerando a extensão territorial de Piracicaba e a localização dos pontos de atendimento, moradores de áreas mais afastadas podem enfrentar dificuldades para acessar o tratamento dentro do tempo recomendado. O distrito de Santana, por exemplo, está a aproximadamente 19 km da Santa Casa e 18 km da UPA Vila Cristina, o que representa cerca de 30 minutos de deslocamento utilizando carro como meio de transporte.

Diferentes tipos de soro para cada animal

Um fator complicador adicional é que os dois pontos de atendimento oferecem tipos diferentes de soro antiveneno, manipulados de acordo com o animal envolvido no incidente:

  • UPA Vila Cristina: disponibiliza apenas o soro escorpiônico (para picadas de escorpião)
  • Santa Casa de Piracicaba: oferece os soros brotrópico (jararaca), crotálico (cascavel), elapídico (coral), escorpiônico (aranha marrom), aracnídico (aranha armadeira) e lonômico (taturana)

Essa distribuição desigual dos tipos de soro pode representar um risco adicional para vítimas de acidentes com animais como serpentes e aranhas que procurem atendimento na UPA Vila Cristina, necessitando de transferência para a Santa Casa e, consequentemente, aumentando o tempo até o início do tratamento adequado.

Histórico preocupante de acidentes

O painel de monitoramento lançado pela SES recomenda que o atendimento em casos de picadas, especialmente envolvendo crianças de até 10 anos, seja realizado o mais rápido possível. Esta orientação ganha ainda mais relevância quando analisamos o histórico de acidentes em Piracicaba.

Gráfico mostrando o número de acidentes com animais peçonhentos em Piracicaba ao longo dos anos
Nos últimos dez anos, Piracicaba ultrapassou a marca de 2 mil notificações por quatro vezes | Fonte: Secretaria de Estado da Saúde

Ao longo dos últimos dez anos, o município já ultrapassou a marca de 2 mil notificações por quatro vezes, incluindo 2023. No ano corrente, já foram registrados 615 acidentes. A maioria das ocorrências envolve escorpiões e atinge principalmente pessoas entre 20 e 39 anos.

Desde 2007, foram registradas 26,9 mil notificações de acidentes com animais peçonhentos na cidade. Deste total, 17,2 mil (64%) envolveram picadas de escorpião. Em nove casos, as vítimas não resistiram e vieram a óbito. Estes números reforçam a importância da dedetização preventiva e do controle de pragas urbanas.

Caso que mobilizou a cidade

Entre os casos fatais, destaca-se o de Jamily Vitória Duarte, menina de 5 anos que faleceu em agosto de 2023 após ser picada por um escorpião. O caso gerou grande comoção na cidade e levantou questionamentos sobre o protocolo de atendimento às vítimas.

Segundo relato da mãe, Patrícia das Graças Adriana Duarte, após a filha sofrer a picada, ela correu até a UPA Vila Cristina, mas só depois de mais de uma hora recebeu a informação de que não havia o soro antiescorpiônico na unidade. A menina foi transferida para a Santa Casa, onde recebeu a medicação, mas o quadro já havia se agravado e ela não resistiu.

Dois dias após o ocorrido, a Prefeitura de Piracicaba afirmou que a UPA tinha o soro antiescorpiônico, mas que não foi aplicado na menina porque ela estava desidratada, o que dificultava o acesso venoso. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil e pelo Ministério Público.

Desafios no controle populacional

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, Piracicaba é naturalmente endêmica para ocorrência de escorpiões devido à sua geografia, condições hidrográficas, geológicas, climáticas e ambientais. A bióloga Regina Lex Engel, responsável pelo setor de sinantrópicos do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), explica que “os escorpiões se adaptaram a utilizar a rede de esgoto como ambiente ideal para viver. Ali há fartura de alimento, condições ideais de umidade e temperatura e não há predadores para eles”.

O controle populacional desses animais representa um desafio adicional. Segundo o CCZ, os aracnídeos são muito resistentes aos produtos químicos, mas a situação é ainda mais complexa com os escorpiões, devido a um mecanismo que os permite captar moléculas no ambiente.

O uso de inseticidas contra escorpiões não consegue fazer controle efetivo da reprodução e acaba forçando-os a deixar seus abrigos em busca de outros locais, o que pode aumentar o risco de acidentes. Uma das estratégias adotadas pelo município é o controle de baratas em bueiros, já que estes insetos são a principal fonte de alimento dos escorpiões no ambiente urbano.

Além disso, o CCZ realiza semanalmente a captura de escorpiões em cemitérios da cidade para controle populacional. Todos os exemplares capturados são enviados ao Instituto Butantan, em São Paulo, para coleta de veneno e posterior produção de soro antiescorpiônico.

Recomendações para prevenção

Diante do elevado número de acidentes e dos desafios no acesso ao tratamento, especialistas recomendam medidas preventivas para reduzir o risco de encontros indesejados com animais peçonhentos. A contratação de serviços especializados de controle de pragas é uma das opções mais eficazes, mas existem também medidas que podem ser adotadas pelos próprios moradores:

  • Manter jardins e quintais limpos, evitando o acúmulo de folhas secas, lixo e materiais de construção
  • Vedar frestas e buracos em paredes, assoalhos e rodapés
  • Utilizar telas em ralos do chão, pias e tanques
  • Afastar camas e berços das paredes
  • Examinar roupas e calçados antes de usá-los
  • Usar luvas e calçados fechados durante atividades de jardinagem ou manuseio de materiais de construção

Em caso de acidente, a orientação é buscar atendimento médico imediatamente, preferencialmente levando o animal causador (se for possível capturá-lo com segurança) para facilitar a identificação e a aplicação do soro adequado.

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