A evolução do novo coronavírus nos obrigou a adotar diferentes estratégias diárias de proteção. Uma usada por estabelecimentos comerciais e governos no Brasil é a cabine de desinfecção de pessoas em locais públicos, uma estrutura que pulveriza uma substância desinfetante em cada um que passa dentro dela.
Roupas, acessórios, pele. A promessa é que tudo fique devidamente desinfectado e livre do novo coronavírus após alguns segundos de ação. Interessante, não? O problema é que nem tudo é o que parece ser.
Apesar de parecer uma estratégia promissora, especialistas alertam: ainda não há evidências científicas de que a desinfecção em cabine, túnel, câmara ou cápsula (ou qualquer estrutura parecida) seja eficaz contra o coronavírus. Nem se os produtos usados são seguros —existem modelos que usam diferentes substâncias químicas.
É o que destaca o próprio Conselho Federal de Química, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Conselho Federal de Medicina, que divulgaram documentos distintos reforçando o posicionamento contra o uso dessas estruturas de desinfecção.
“Já recebemos diversas consultas de empresas sobre substâncias para uso nessa forma de aplicação, mas não houve comprovação de eficácia contra microrganismos, ainda que semelhantes ao da covid-19, ou que não há risco para a saúde das pessoas expostas”, explicou a Anvisa para Tilt.
“Uma das ‘soluções’ mágicas preconizadas para algumas estruturas é a aplicação de solução de hipoclorito [de sódio, também conhecido como água sanitária]. Além da não comprovação da eficácia no curto espaço de tempo, como mencionado anteriormente, há risco de irritação da pele e olhos, intoxicação por inalação e também de prejuízos aos tecidos das roupas [podem manchar]”, acrescentou a agência.
Outros produtos químicos comuns usados em estruturas de desinfecção têm sido dióxido de cloro, peróxido de hidrogênio, quaternários de amônio, ozônio, iodo, triclosan e clorexidina.
Qual é o posicionamento dos órgãos
- Em geral, as substâncias químicas usadas funcionam bem para combater o novo coronavírus, mas o seu efeito é comprovado em superfícies e objetos (com exceção da triclosan e clorexidina, aprovados pela Anvisa para higienização das mãos). Nada comprova o uso em humanos.
Nenhum desinfetante deve ser utilizado para a descontaminação de pessoas, pois esses produtos não são considerados antissépticos de uso tópico. Desinfetantes são produtos químicos tecnicamente classificados como saneantes e, como tal, devem ser aplicados exclusivamente sobre superfícies inanimadas
Conselho Federal de Química
- Há o temor de que o seu uso das estruturas de desinfecção possa dar às pessoas a falsa segurança de que não precisam mais se preocupar com a lavagem das mãos com água e sabão ou higienização com álcool em gel, métodos mais eficientes de prevenção.
- A dispersão das substâncias, mesmo que diluídas corretamente para uso em objetos e superfícies, pode causar danos à saúde humana.
A nebulização ou aspersão de produtos classificados como saneantes no corpo humano têm potencial para causar lesões dérmicas, respiratórias, oculares e alérgicas
Conselho Federal de Medicina
- Também não há evidências do tempo de duração que uma pessoa deve ficar exposta à substância higienizadora. Algumas levam de 20 a 30 segundos para concluir o processo. Dependendo do produto químico adotado, o tempo da cabine é insuficiente para a desinfecção.
Como usar os produtos químicos
A Anvisa diz que o uso de substâncias que desinfetam superfícies, objetos e mãos deve seguir as regras de diluição pré-determinadas para eliminar riscos.
Dessa lista, o professor Reinaldo Camino Bazito, professor do Instituto de Química da USP (Universidade de São Paulo), explica que estudos têm considerado a água sanitária e a água oxigenada como melhores opções para combater o novo coronavírus. Em seguida, os quaternários de amônio (encontrados em desinfetantes líquidos) aparecem no ranking de eficiência.
A doutora em bioquímica Graciele Almeida De Oliveira, pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), detalha que os produtos que utilizam substâncias químicas como essas devem levar em conta a concentração das soluções, a forma como são combinadas e a suscetibilidade das pessoas a alergias
“Muitas dessas substâncias são corrosivas. Elas podem não apenas danificar superfícies metálicas, mas também lesionar a pele, causando irritação”, reforçou Oliveira, que deu o exemplo do hipoclorito de sódio.
“Na quantidade adequada [concentração], ele é eficaz como desinfetante de superfície porque é capaz de reagir com biomoléculas [estruturas químicas] que estão presentes nos microrganismos, e mesmo proteínas que estão nos vírus. Mas, como o hipoclorito de sódio não é um torpedo capaz de ser direcionado a um único alvo, ele acaba também reagindo com as nossas biomoléculas, as degradando e causando lesão/irritação na pele.”
Para os dois especialistas, o uso das estruturas de desinfecção de pessoas não se mostra eficiente diante disso tudo. Seria muito melhor que objetos, como carrinhos de supermercado, por exemplo, fossem desinfetados por meio dessas cabines, acredita Bazito.
“Em superfícies porosas, como o tecido das roupas, o vírus fica ativo por menos tempo e tem mais dificuldades de contaminação. É melhor desinfetar o corrimão da escada rolante, a barra que as pessoas seguram, os assentos do transporte público. Assim, você não precisa expor as pessoas aos agentes químicos”, argumentou.
O professor até citou um exemplo pessoal durante a entrevista. Ele e sua esposa higienizavam as compras de mercado com água sanitária diluída sem luvas de proteção. Com ele, nada aconteceu. Mas a esposa começou a ter problemas com a biometria do prédio em que mora —culpa da sensibilidade ao produto químico.
Pela dinâmica de contaminação do vírus (gotículas e superfícies contaminadas), a Anvisa continua com a sua orientação: a melhor forma de combate ainda são as medidas de higiene pessoal.
“O vírus não se multiplica fora do corpo humano. Se cair na superfície, ele não vai se multiplicar. Desde que haja a higiene adequada, o vírus que estiver na roupa dessas pessoas é controlável. Chegando em casa, coloca-se a roupa para lavar”, afirmou o professor Bazito.
Para a professora Oliveira, por mais que existisse uma cabine comprovadamente eficaz e sem dano à saúde, o risco de contaminação em locais como no transporte público continuaria grande.
“Ainda assim, uma pessoa pode ser contaminada ou contaminar outra dentro do metrô, lembrando que o vírus pode ser levado por gotículas [tosse] ou mesmo estar presente dentro do transporte. Pessoas que levam a mão a boca e depois em uma superfície contaminam a superfície”, completou a professora Oliveira.
Conclusão: não vale
Os Conselhos Federais de Química e Medicina recomendam que a população não se exponha às cabines de desinfecção (e soluções semelhantes) e sugere que empresas e poder público adiem investimentos na compra de tais equipamentos por enquanto.
Se ficar caracterizado o uso de produtos aprovados para um fim específico (como desinfecção de superfícies) em outras práticas que não as de sua origem, o ato pode ser caracterizado como infração sanitária (Lei nº 6.437/1977). Isso pode resultar em multa, prisão e outras medidas, dependendo da gravidade, informou a Anvisa.